*UM BISPO SEPULTADO NA IGREJA?!*

Sepultamento de Dom Alexandre Cardeal do Nascimento na Sé Catedral de Luanda

Quem lê com verdade e honestidade a história da Igreja, perceberá que as igrejas, desde os primórdios da fé cristã, nunca foram somente espaço de encontro com Deus (dimensão vertical), mas também espaço de encontro com os outros (dimensão horizontal). Para quem crê, sabe que a entrada na vida da fé é, ao mesmo tempo, adesão à grande família de Deus, graças ao sangue de Cristo, que abateu o muro de inimizade que separa os Povos (cf. Ef 2, 14).

Quando morreram os primeiros mártires em nome da fé, as primeiras comunidades cristãs organizavam peregrinações junto dos seus túmulos, porquanto sabiam que, para eles, a eternidade não é uma promessa para quem vive segundo Deus na temporalidade. Para quem vive à medida do amor de Deus, a eternidade é uma certeza, porque a existência não termina no vazio, porque não teve o seu início no acaso. Para os primeiros cristãos, uma realidade era certa: habitavam toda região estrangeira como se estivessem na própria terra, mas também sabiam que toda pátria é uma terra estrangeira, porque a única Pátria é o céu (cf. Ep. Diogneto V).

Esta premissa inicial deve levar-nos a perceber a Igreja como uma realidade que não se nutre apenas da Sola Scriptura, porque esta, antes de ser tal, foi expressão vivente de uma comunidade de fé, de uma comunidade formada por pessoas apaixonadas por Deus e profundamente tocadas pela causa do crucificado. Por isso, para perceber a razão por que um Bispo tem uma relação especial com a sua Igreja particular, representada pela Catedral, basta olhar simplesmente para o anel episcopal, que não é apenas um elemento decorativo, mas é a expressão concreta de uma missão “esponsal” por meio da qual consagra a Sua vida e deve estar disposto a dar o seu sangue.

No período Medieval, para que uma Igreja fosse considerada Catedral, de facto, devia fazer alusão ou ao martírio ou ao sepultamento de um santo, porque os fiéis acreditavam que a Igreja se edifica sobre o fundamento de homens e mulheres que amaram apaixonadamente Cristo e abraçaram incomensuravelmente a sua causa. Os cristãos, escreve Paulo, são edificados sobre o fundamento dos Apóstolos …. E têm como pedra angular o próprio Cristo (cf. Ef 2, 20).

Quem é o Bispo senão a memória viva da Tradição? Quem é o Bispo senão aquele que carrega em vasos de barro o tesouro da Tradição na mente e no coração? Quando se olha para o Bispo, deve-se perceber que entre ele e nós existe uma cadeia entrelaçada que nos ligada à Tradição, que torna as gerações longínquas tão próxima a nós.

Por isso, o Codex Iuris Canonici (n. 1242), refazendo-se a uma tradição do início do século VIII, afirma explicitamente que não se deve sepultar quem quer que seja dentro da Catedral a não ser o bispo diocesano, emérito ou mesmo o Cardeal.

Com isto, as pessoas vão rezar ao lado de um corpo desconhecido?

Certamente não, mas sim de um irmão, porque a fé não é um apanágio para pessoas singulares, mas uma corrente que nos une àqueles que se dedicaram à causa de Cristo antes de nós.

Enfim, para os cristãos, o corpo, embora na sua corruptibilidade, é sempre morada santa, é espaço da habitação de Deus. O corpo não uma realidade que aprisiona uma alma pura que precisa alcançar o estado de libertação, como entendia Platão. O corpo é a presença material de Deus na história. Por isso, quando se sepulta um Bispo na Catedral, realiza-se a mais elevada restituição a Deus dos benefícios que concedeu à Sua Igreja durante o período de exercício das funções do Seu Servo. Sepultar um Bispo na Catedral não é um acto de privilégio, mas sim um abraço confirmado à Tradição vivente da Igreja.

Padre Gelson Dinis

Romae, IX-X-MMIV